segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

O normal e a norma

Por Roberto Marques*

“A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.”
(Marina Colasanti)

Jornais trazem notícias diárias sobre assaltos, assassinatos, corrupção, enfim, mazelas nossas, sociais, mas que muitas vezes insistimos em pensar que são demônios externos ao nosso paraíso. Achamos que somos “puros”, ou que nossos pecados são menores, fáceis de absolvição mediante uma reza simples ou uma boa ação caridosa, que também nos livram de possíveis culpas.
Os tiros que atravessam o ar das favelas são tiros nas favelas. Por estarem lá, o máximo que corações anestesiados, de cidadãos plenos de seus direitos, moradores de áreas exteriores, podem sentir é uma dose de piedade por aquelas almas sofredoras, vítimas potenciais de balas perdidas ou não.
Essa talvez seja a grande contradição que habita as escolas públicas municipais do Rio de Janeiro: professores, em sua maioria, não moradores de favelas, trabalham nas favelas, dentro de uma instituição que não comporta a favela, mas que ali está instalada. O drama é o de conseguir se enxergar como algo precarizado, desprovido de poder significativo, ainda que fora dali não seja necessariamente assim.
Por isso, por essa contradição, muitas vezes não nos damos conta, professores de áreas escolhidas para operações policiais de guerra, dos absurdos cotidianos. Tiros na rua ao lado nem sempre são suficientes para as aulas pararem. Tiros na rua de cima, também. A possibilidade real de confronto, muito menos (e sabemos muito bem quando irão acontecer). Nada disso parece ser motivo para desobedecer a CRE (trata-se disso: obediência) e colocar sua vida em primeiro lugar, ou dar um sinal de que isso não é normal. O importante é seguir a norma. Isso, a escola ensina muito bem.
Por isso os tiros incomodam tanto, quando perfuram as paredes da escola. Por isso os “caveirões” estacionados em frente ao portão da escola são tão violentos. Por isso as pessoas baleadas na rua da escola nos chocam tanto.
Simplesmente por nos lembrarem do atraso dos nossos movimentos. Por nos lembrarem que, nessa hora, abrimos mão de alguma coisa antes e pode ser tarde demais.

*Roberto Marques é Professor da Rede Municipal

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